Por EBC,
“É um divisor de águas”. “É transformador”. Essas são as avaliações de duas mulheres de comunidades que participam do projeto de pesquisa agro alimentar Paisagens Alimentares, coordenado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Alimentos e Territórios Alagoas e financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que está transformando comunidades rurais no semiárido nordestino.
Sem a presença do pai, Anatália Costa Neto, a Nat, a caçula dos dez filhos, começou a trabalhar com 11 anos em casa de família. Ainda criança, ia para o mangue ajudar a mãe a pescar aratu e ostras.
Hoje, aos 41 anos, é uma das 14 integrantes da Associação das Mulheres Empoderadas de Terra Caída de Indiaroba, em Sergipe. Nat chegou na comunidade aos 18 anos para se casar e não saiu mais. Além do artesanato que já faziam no local, com peças em crochê, macramê, madeira e conchas, agora após a pesquisa da Embrapa Alimentos e Territórios Alagoas, desenvolvem o projeto de turismo de base comunitária, que se tornou mais uma fonte de renda para a comunidade.
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Nat ganhou, neste mês, o prêmio Mulher de Negócio, na categoria Microempreendedora Individual com o conjunto de ações que realiza na comunidade como a criação do hambúrguer de carne de aratu, um caranguejo típico do local, no qual concorreu com 150 mulheres do estado de Sergipe. Segundo ela, o produto que já era produzido anteriormente, ganhou atratividade após o trabalho da Embrapa.
“O projeto me fez vender mais, saber como calcular o preço, que eu não tinha noção. Foi através deles que eu agreguei valor ao meu produto. Vendo na lanchonete e outras de fora pegam comigo. O turista vem e leva para o consumo próprio com uma caixinha de isopor. Muita gente leva para fazer em casa”, contou à Agência Brasil.
O projeto Paisagens Alimentares tem como objetivo promover a valorização da cultura alimentar e do turismo sustentável de base comunitária na região. Os locais escolhidos receberam as visitas dos técnicos da Embrapa que começaram a trabalhar com os moradores em oficinas, intercâmbio e imersões, envolvendo diretamente mais de 500 participantes e provocando um impacto estimado em mais de cinco mil pessoas da região.
No caso da Nat, a orientação para agregar valor beneficiou também outros produtos como os biscoitos de capim santo e de batata-doce, os produzidos a partir da fruta mangaba com geleias, cocadas, compotas, bolos e pudins, e os mariscos, que também têm sido um sucesso.
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“Assim a gente vai criando produtos para poder trazer mais fontes de renda para a nossa vida. São muitas coisas é só a gente ter a ideia que vai fluindo na mente. Foi através da Embrapa que a gente foi conhecendo mais”, comentou.
Visibilidade
Ana Paula Ferreira, 38 anos, é do assentamento Olho D’Água do Casado de Palmeira dos Índios, no alto sertão de Alagoas, onde junto com outras sete mulheres é coordenadora. Segundo ela, o projeto da Embrapa promoveu mudanças no assentamento.
“É um projeto transformador, que está trazendo economia e liberdade, pertencimento principalmente, no território com essa questão de fortalecer o que é nosso e desse conceito que é viver da agricultura familiar com a contemplação para mostrar o que há de mais belo para nossos visitantes sobre o cotidiano dos agricultores que colocam a mão na terra para produzir o alimento saudável”, relatou a coordenadora, em entrevista à Agência Brasil.
O território está inserido em uma área de reforma agrária tendo ao redor o Pôr do Sol dos Cânions Dourados e Cânions do São Francisco, permitindo ainda a exploração turística do local.
Para Ana Paula, a busca pela visibilidade do trabalho feito na agricultura familiar e em assentamentos é um fato importante para esses produtores.
“No conceito de mostrar para o mundo o que estamos fazendo e as pessoas tirem essa venda dos olhos. Quando um visitante vem para a nossa comunidade e tem esse contato com o agricultor, os animais e o povo da roça é exaltado e dando importância a quem produz o alimento”, indicou.
Ela destaca que um dos avanços do projeto na comunidade foi trabalhar com o envolvimento de jovens do território que começavam a se afastar do trabalho feito no local. “Hoje com as universidades ao redor, os institutos e as oportunidades eles não precisam sair e nem sonhar ir tão longe” disse.
Além disso, houve uma expansão das atividades que podem ser desenvolvidas no Olho D’Água do Casado e resultar em geração de renda na agricultura que não eram vistas antes pela comunidade. “Depois da Embrapa e do Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] na comunidade, a gente contemplou tudo dentro do assentamento, com esse conceito de preservação”, afirmou, completando com mais um avanço que é o projeto de artesanato desenvolvido com as mulheres locais aproveitando a biodiversidade da caatinga.
“Muitas pessoas têm o conceito de que a caatinga está morta no período de seca do verão, mas com os conhecimentos da Embrapa a gente viu que pode aproveitar a caatinga o ano todo e a preservação aumentou, ainda mais, pelas pessoas estarem cultivando as suas árvores nativas”, explicou.
Criação do projeto
O supervisor do setor de inovação e tecnologia da Embrapa Alimentos e Territórios Alagoas, Aluísio Goulart Silva, contou que o projeto surgiu de uma articulação com o BID ainda em 2018. As negociações continuaram e, quando a Embrapa Alimentos e Territórios Alagoas começou a funcionar, o projeto se enquadrava perfeitamente na missão da nova unidade criada pela empresa.
Ao todo foram três anos de desenvolvimento. No primeiro foi feita uma pesquisa exploratória dos territórios, que levou em consideração dados de instituições, universidades, secretarias de estado de turismo e agricultura e do Sebrae nos estados de Sergipe, Alagoas e Pernambuco. O comitê técnico gestor elencou 20 critérios para avaliar as possibilidades de participação de territórios e comunidades, que foram visitados pelos técnicos.
Com a avaliação, foram identificados cinco territórios e seis comunidades, duas delas em Alagoas foram duas comunidades. Uma é a Cooperativa Mista de Produção e Comercialização Camponesa (Coopcam) de Palmeira dos Índios, na região da Serra da Barriga.
“Uma região muito interessante que tem um histórico grande relacionado à cultura indígena, o próprio nome da cidade representa isso e essa cooperativa já trabalhava com um fermentado de jabuticaba há 40 anos”, explicou, em entrevista à Agência Brasil, acrescentando que outro fator que contribuiu com a escolha foi a intenção da comunidade de desenvolver uma atividade de turismo rural.
A outra foi a do município de Olho D’Água do Casado, que contemplou ainda cidades vizinhas Piranhas, bem conhecida no turismo no Vale do São Francisco, e Delmiro Gouveia.
“Ali concentramos as nossas ações no Assentamento Nova Esperança que é relativamente novo, em vista de outros no estado, que deve ter entre 25 e 30 anos de existência, cujas famílias trabalham basicamente com produção agroecológica e exploram todo o potencial, principalmente dos sítios arqueológicos da região, inclusive vários deles já catalogados pelo Iphan”, contou, acrescentando que nesta localidade ainda tinha a atividade de pesca artesanal no Rio São Francisco.
Em Sergipe, mais duas comunidades: uma em Indiaroba, município que faz divisa com a Bahia, em uma região que fica quase em frente a Mangue Seco, local bem conhecido do ponto de vista turístico.
“Ali temos uma comunidade grande de catadoras de mangaba e também elas se autodenominam marisqueiras. Sobrevivem tanto do marisco na pesca artesanal, quanto do fruto da restinga, que são a mangaba, o murici, o araçá, vários tipos de frutos”, disse, informando que essa comunidade já vem trabalhando ao longo do tempo em outros projetos da Embrapa com foco em recursos genéticos.
Ainda em Sergipe, na região metropolitana de Aracaju, foi escolhida São Cristóvão, a quarta cidade mais antiga do Brasil, que tem arquitetura colonial. O que contribuiu para a escolha foi a atividade das mulheres conhecidas como beijuzeiras, que produzem o beiju, um bolo tradicional feito com três ingredientes que contam a história da miscigenação brasileira que são o coco, a mandioca e o açúcar.
“O coco vindo da África, a mandioca dos indígenas e o açúcar da Europa. Elas trabalham muito, inclusive com alguns doces conventuais, originais dos conventos europeus, um exemplo de um dos doces, considerado um patrimônio cultural e imaterial da cidade, a queijadinha que não tem queijo. Na Europa utilizavam queijo, mas quando chega no Brasil, foi substituído pelo coco”, declarou, destacando que além dos doces, a cidade vive em torno do artesanato original que conversa com a cultura alimentar local.
Em Pernambuco, são dois grupos que dividem o mesmo território que é o Manguezal situado na área de proteção ambiental de Guadalupe, próximo a Praia de Carneiros de um lado da margem tem o grupo da Associação das Marisqueiras de Sirinhaém (Amas), do povoado de Aver-o-Mar. Do outro lado da margem, no município de Rio Formoso tem a Associação Quilombola Engenho Siqueira.
“É muito interessante a composição porque eles compartilham os mesmos recursos naturais do manguezal enorme muito bonito e preservado, justamente porque está em uma área de proteção ambiental. As marisqueiras contam muito da sua história pelos frutos do mangue, enquanto os quilombolas que também sobrevivem da pesca artesanal, ainda fazem uma agricultura agroecológica auto sustentável muito interessante”, completou Goulart Silva.
Protagonismo feminino
Uma situação comum entre as comunidades é o protagonismo feminino com mulheres rurais à frente das atividades, liderando associações, coordenando trilhas turísticas, organizando vivências e estimulando a produção artesanal e agroecológica.
“Coincidentemente, todas as lideranças são femininas. Foi um projeto praticamente trabalhando com mulheres rurais, que é a nomenclatura usada na Embrapa”, pontuou o supervisor.
Durante três anos, os técnicos da Embrapa ficaram em contato direto com os moradores das comunidades dos três estados que participaram do projeto. “É a missão de valorizar os ingredientes da biodiversidade brasileira e promover o desenvolvimento territorial a partir de estratégias de valorizações diversas. Entendemos que neste caso do projeto, conectar os alimentos com a cultura alimentar local e o turismo de base comunitária seria uma boa ideia”, informou.
O supervisor chamou atenção de uma característica da comunidade quilombola que tem no funje, um tipo de papa parecida com pirão, feito com farinha de mandioca, água e sal para acompanhar outros preparos caldosos como a peixada.
“A grande curiosidade é que este mesmo prato com esse nome é original de Angola. Os estudos mostram que este grupo de fato tem uma conexão muito forte com Angola. A cultura alimentar daquele povo nos certifica a origem deles”, comentou, admitindo que podem ter origem na Nação Bantu.